O real que ficou após a travessia (por Míriam Leitão) – Heron Cid
Bastidores

O real que ficou após a travessia (por Míriam Leitão)

2 de julho de 2019 às 15h36
Brazilian money background. Bills called Reais (Real).

Muitas vezes a travessia pareceu impossível. Várias tentativas fracassaram, o atoleiro a ser vencido era imenso, havia divergências sobre a melhor estratégia. Aqueles tanques, carros blindados e tropas que saíram às ruas dias antes, os aviões da FAB que cruzaram os céus com as suas cargas foram vistos como naturais. Era uma guerra, o que se travava. No dia 1º de julho, uma sexta-feira, as agências bancárias ficaram abertas até mais tarde, para que se pudesse trocar o dinheiro velho pelo novo.

Vinte e cinco anos depois, a memória não registra a enormidade do feito, porque é natural ter uma moeda que não muda de nome há um quarto de século, da qual não se cortam zeros. É comum ter uma inflação que desce depois de subir um pouco, como agora. A taxa em 12 meses chegou perto de 5%, mas com o dado de junho voltará para 4%.

Segundo o IBGE, no exato dia de ontem, o Brasil tinha 81,1 milhões de pessoas com até 25 anos, 38% da população. Esses brasileiros jamais conviveram com outra moeda. Eles e os que eram pequenos naquela época podem se perguntar: por que ter tanques e carros blindados nas ruas e aviões da FAB nos céus? É que o novo plano quis trocar todo o meio circulante do país. Era o aparato para transportar o dinheiro. Outros planos aceitaram carimbar cédula velha com outro nome. O real quis marcar a inauguração da nova história monetária.

Hoje parece fácil. Não foi. Em março fora lançado o embrião da nova moeda, a URV. Os contratos foram refeitos e os preços recalculados nessa unidade de conta. Tudo voluntariamente. No dia marcado, a URV virou real. Aquele caminho foi necessário para convencer as mentes a deixar para trás a moeda indexada e inflacionada. Não foi simples, não foi sem risco.

Alguns economistas queriam outros caminhos. O PT defendia o pacto entre patrões e empregados, que nunca funcionou. Os economistas mais à direita receitavam o controle fiscal e monetário. Era necessário, mas não suficiente. Aquele momento era preciso encontrar uma estratégia para desindexar a economia. Nem o Plano Collor, que congelara os ativos financeiros e fizera com violência o controle monetário, havia conseguido vencer a inflação. Portanto, a sofisticada engenharia de transição era o melhor caminho.

O Plano Real não foi só essa transição. Os fracassos anteriores mostraram que a luta continuava após o Dia D. No começo de 1995, o então presidente Fernando Henrique aproveitou a popularidade dos primeiros seis meses de mandato e aprovou a PEC que mudou o capítulo econômico, acabando com o monopólio constitucional da Petrobras e da Telebrás. Na área de petróleo, a estatal continua excessivamente dominante, mas as empresas de telefonia seriam privatizadas antes do fim daquele primeiro mandato. Essas e outras ideias liberais foram implantadas, como a venda da Vale, a criação de agências reguladoras, a reforma administrativa, o fundo garantidor de crédito. Avanços relevantes vieram depois, como a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Quando eu quis dimensionar no livro “Saga Brasileira” o tamanho do tormento vivido pelo país, escolhi a conta da inflação acumulada entre dezembro de 1979 e dezembro de 1994. Incluí os primeiros seis meses do plano porque, como não houve congelamento, a taxa ficou ainda alta, apesar de declinante. Naqueles tumultuados 15 anos, o Brasil teve 13 trilhões e 342 bilhões por cento de inflação.

Houve, claro, vários erros. Demorar tanto a mudar o câmbio, perder no Congresso a idade mínima na reforma da Previdência, só passar a ter superávit primário a partir de 1998, por exemplo. Mas nada foi fácil. Nos meses seguintes, e por causa da queda da inflação, começou a maior crise bancária da história do país. Foi feita intervenção no Econômico, Nacional, Bamerindus, todos eles estavam entre os dez maiores bancos do Brasil. Mesmo com o terromoto, o real continuou. Quem olha para trás e aponta apenas o que se deixou de fazer, não vê a saga que foi romper com aquele doentio passado. A inflação chegou a dois dígitos nos anos 1940, mas a ditadura militar, ao estabelecer a correção monetária, armou a bomba que só foi desarmada naquele 1º de julho. O Plano Real reduziu a inflação a um dígito, taxa que o país não havia visto por 50 anos.

O Globo

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