Oficina da vida – Heron Cid
Opinião

Oficina da vida

16 de junho de 2019 às 09h36 Por Heron Cid

Ainda sinto o cheiro forte nas narinas. E na memória. Nas manhãs daquele ofício, era comum o aroma no ar de solventes, graxa e óleos, entre a poeira da lixa raspando a massa de lanternagem.

Homens se revezando para abrir motor, trocar peças e recuperar latarias empenadas e avariadas e aplicar nova tinta.

Os menos experimentados ficavam em funções reservadas aos amadores. Dessa ala eu me aproximava. Dos outros, mais concentrados, temia carão pelo risco de estar atrapalhando a perícia de uma solda. Fitava os olhos no fogo que espalhava do maçarico feito chuva.

Até tentava alguma coisa na parte final e mais singela do processo de lixar com as folhas finas e com água até remover os excessos restantes.

Mas observava de tudo. E tudo era mágico. Um veículo chegava enfermo e saía curado. Do amasso para a cara nova. Do ‘prego’ para o ronco do motor. Como se nada tivesse acontecido.

Acho que isso mexia com o imaginário de criança em transporte para a adolescência e me obrigava todo dia passar pela Oficina de Joãozinho Rodrigues, o vizinho de minha casa, na Ana Rocha, número 18.

Fora da escola, lá era o lugar que mais tomava meu tempo e atenção. Sentia que estava aprendendo alguma coisa. E não era mecânica e lanternagem.

Entre os cenhos franzidos e suados de quem tentava serrar um ferro contorcido e os sorrisos de quem contava piadas e fofocas para passar as horas e espantar o cansaço, o menino de olhos grandes e arregalados pairava querendo passar despercebido.

Antes de bater o ponto, como o tilintar seco do martelo torneando alguma superfície, via, no raiar do dia, Joãozinho, o dono da oficina, passar cedinho para comprar o pão e o leite no seu bem conservado Del Rey azul.

O carro era macio como seu dono, sereno, de poucas palavras e de alguns risos. Risada só pra tirar alguma graça de Negão, Edgar, Américo, Mazinho, alguns dos seus ajudantes.

Para mim, independente da idade já gasta, era o possante mais bonito daqueles anos 90 em Marizópolis. Nunca dizia, mas eu queria ter um igual. Ou ao menos andar de carona no seu banco e ver as ruas da cidade pelo seu vidro, em outra dimensão.

Joãozinho não está mais lá. A oficina acabou. Mas o que ela me ensinou nunca morreu em mim. E hoje, décadas depois, eu sei o que aprendi com eles. Restaurar, transformar, consertar, prolongar, devolver a forma, o brilho, o novo. É mais do que arte e profissão. É missão de vida.

*Esse texto/crônica homenageia o aniversário de Marizópolis, minha terra natal, 447 Km distante de João Pessoa, capital da Paraíba. A oficina que deu forma à minha existência.

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