O que é sério em Mourão vs. Carlucho (por Reinaldo Azevedo) – Heron Cid
Bastidores

O que é sério em Mourão vs. Carlucho (por Reinaldo Azevedo)

26 de abril de 2019 às 11h00
O vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) durante evento no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 25.abr.2019/Folhapress

Nada há de irrelevante, jocoso ou desprezível nos embates entre Hamilton Mourão, vice-presidente da República, e Carlos Bolsonaro, que atira em nome do pai. Trata-se do confronto entre a democracia liberal e o populismo autoritário, que recorre às urnas para solapar as garantias que o elegeram. Mourão é o ator improvável no papel de garantidor de direitos fundamentais? Também acho, mas isso só nos diz de algumas particularidades que o embate tomou entre nós. O fenômeno tem alcance mundial, como evidencia Yascha Mounk no livro “O Povo Contra a Democracia”.

Não vou me restringir aqui às lutas palacianas, até porque o Planalto é apenas um dos palcos em que se trava essa batalha, embora tenha de caracterizá-la brevemente. Há outros. Infelizmente, setores consideráveis da imprensa se tornaram, na prática, aliados do populismo de extrema direita, e os terminais que os conectam com o autoritarismo são a Lava Jato e a luta contra a corrupção. À medida que esta se tornou um valor absoluto, relega os direitos individuais e públicos ao papel de coadjuvantes da marcha moralizadora. Se um valor é absoluto, todos os outros a ele se subordinam.

Um pouco sobre a rinha palaciana para poder avançar. Por que Bolsonaro passou a ver em Mourão o inimigo a ser abatido? Será que o general teve um “estalo de Vieira” democrático e acordou adversário do populismo de extrema direita? Foi dormir como o candidato a vice que chegou a propor uma Constituinte feita por notáveis e acordou como o empossado que defende o diálogo também com movimentos de esquerda? A resposta, nesse particular, não é complexa. Embora Mourão não seja estranho à ideia da tutela que os militares ambicionam ter da sociedade civil, marcadamente desde o golpe da República, seu conservadorismo reserva um lugar às instituições.

Não tardou para que os Bolsonaros, sob a inspiração de Olavo de Carvalho, percebessem que também o estamento militar era um empecilho para o exercício da tirania garantida pelas urnas. No meio do caminho, há mais do que os Poderes Legislativo e Judiciário. A rigor, e isto fica para outras tertúlias, a leitura que os militares fazem do Brasil, de suas vocações e de seu futuro, é mais consistente –não quer dizer que eu a considere necessariamente certa– do que a desses outros atores. Ou por outra: é mais difícil criar a dissidência no corpo fardado do que entre os representantes do povo ou os togados.

É provável que Bolsonaro não tivesse sido eleito sem a facada, mas a facada só serviu como o voo da borboleta na história do caos. E chego, então, ao papel que a imprensa tem exercido neste momento notável da democracia brasileira. Mundo afora, ela tem resistido à ascensão do populismo autoritário. Entre nós, infelizmente, são raros os que apontam o papel que teve e tem a Lava Jato na destruição da ordem democrática. Relegou-se a um novo ente de razão o papel de limpar o Brasil de suas impurezas. O combate à corrupção ou a caça aos tarados serão sempre bons estandartes da hipocrisia autoritária, pouco importando quantas garantias terão de ir para a fogueira das vaidades garantistas.

A caracterização que Yascha Mounk faz das forças alinhadas com a “democracia iliberal” é precisa, embora eu repudie o termo. Eu o fiz pela primeira vez em artigo no longínquo 2013, contestando uma tese da professora Jocelyne Cesari, que assim definia o regime turco. Encerrei assim aquele texto: “Continuo a escolher o único regime que pode abrigar quem sou e penso: a democracia! A democracia LIBERAL! O ‘iliberalismo democrático’ é uma invenção estúpida de grupos que usaram o ambiente do livre pensamento para flertar com a sua destruição”.

Amarro as pontas: os principais aliados de Bolsonaro na luta contra a democracia liberal não são Olavo de Carvalho e as milícias virtuais, com sua penca de boçalidades, mas o silêncio da imprensa quando se condena sem prova, quando se recorre à prisão preventiva como instrumento de coação e quando se trata o sistema de garantias constitucionais como empecilho ao combate à corrupção. Deltan Dallagnol, Sergio Moro e seus porta-vozes fazem muito mais em favor da “democracia iliberal” —que é só uma ditadura por outros meios— do que Bolsonaro, Carlucho ou Carvalho. No fim das contas, trata-se de saber de que lado estamos quando a referência é o Estado de Direito. O primeiro que piscar escolheu seus parceiros de luta. Mourão, depois de eleito, ainda não piscou.