O país conta com o presidente. Por Valentina de Botas – Heron Cid
Bastidores

O país conta com o presidente. Por Valentina de Botas

11 de março de 2019 às 10h00
Bolsonaro (Foto: Norberto Duarte/AFP)

Sem renunciar a alguma solidão, gosto de gente. Gosto do almoço com a parentada, de festa, de show, cinema, teatro, gosto da rua, de viajar para ver gentes, de feiras, igrejas; onde houver gente, gosto de estar. Presto atenção. Igual a um fotógrafo que só sabe o que procura quando aquilo que procura o encontra; a câmara, não tenho, não. O registro fica nos sentidos. O Carnaval é uma oportunidade para observar. Nunca vi nada parecido com o vídeo que o presidente Bolsonaro divulgou pelo Twitter, mas já vi gente chorando no meio da folia; uma vez um homem lia “Sagarana”. Neste ano, fantasiada de mim mesma, de tênis, camiseta, shorts com paetês e purpurina na bochecha, como de costume saí num pequeno bloco de rua em São Paulo com minha filha adolescente e confirmamos a tendência dos últimos anos: cada vez mais jovens menores de 18 anos consomem bebida alcoólica.

No centro da cidade, muitos deles, fora dos blocos, já bêbados, soltavam gritos sem nexo. Num grupo, garotos tristes com outros alegres, todos gritando “acabou”. Alguma coisa acabou, mas não sei o que começou. Meus olhos se esvaziaram no transe dos garotos e só vi os últimos anos passando dentro de mim, sonhos contaminados nos seus detalhes mais íntimos. Passado já parido e futuro que nasce um pouco a cada instante estão no tempo, enquanto a vida está aí para ser vivida no seu único habitat possível: o presente. Mas que vida? Tive medo, apertei a mão da minha filha e trouxe a garota para bem perto de mim, como quem junta os pés para confirmar que o chão não se abriu. O registro que ficou nos meus sentidos é que o Brasil impôs à juventude um alçapão moral, em que ela está cada vez mais exposta a vícios e violência.

Muita gente fala que nada mudou, outro tanto diz que tudo vai mudar; a gente distrai a esperança para que ela não se estilhace. Há esperança, mas não para todos, disse Kafka. Não sei, mas não acredito que a história possa ser zerada, que haja novas eras em pó as quais basta adicionar à água, mexer e consumir. Não é assim. Acho. Penso. Presto atenção: as realidades são porosas. Reparem que Davi Alcolumbre (ícone maquiado para a nova política) venceu Renan Calheiros (ícone da velha) para a presidência do Senado, mas o Governo, trocando a ingenuidade fingida na campanha pela maturidade que o jogo requer, chamou Fernando Bezerra (MDB-PE) para líder na Casa. O ex-Ministro da Integração de Dilma Rousseff responde a cinco inquéritos e ostenta o fundamental doutorado nas engrenagens daquele bioma: que sorte da nova política existir a velha política. Não estou sendo cínica, pessimista ou otimista drummondianamente, estou sendo brasileira, morena como vocês, queridos leitores, e aprendi que há uma hora em que os bares se fecham e todas as virtudes se negam. Grávida de novas virtudes, a gente anseia começar na sequência daquilo que acabou e quer reforma da previdência, emprego, viver sem ser morta.

Necessário atrair o presidente Bolsonaro para essa urgência. Nos 60 dias e poucos de Governo, ele se dispersou até em bate-boca com a Xuxa, uma subcelebridade aposentada; para alguns, isso foi positivo já que Bolsonaro discutira com perfis falsos na internet. O cúmulo dessa compreensão raquítica do papel de um presidente da república foi – espera-se – divulgar o tal vídeo do golden shower. Somente os devotos incuráveis aprovaram a atitude, enquanto a maioria lúcida reconheceu que o aberrante conteúdo tornava absurda a divulgação. O Estadão radiografou a dispersão perigosamente negligente: o tuíte desatinado foi uma das 505 postagens do presidente até então, dos quais apenas 5 falavam da reforma da previdência e 2 citavam o pacote anticrime, o resto se divide entre ataques à imprensa e tolices juvenis sobre temas da campanha. Se Lula não desce de um palanque há 40 anos, Bolsonaro não encerra a campanha nem admite que não se governa por redes sociais; o que produziu crises supérfluas enrugando um governo recém-inaugurado. O ambiente virtual, que não testa sua sofrível aptidão de gestor, é mais controlável do que o mundo tridimensional onde há 64 mil assassinatos não virtuais, 14 milhões de desempregados que não são avatares e uma economia em coma. Compreendo, mas o país, que não cabe em 240 caracteres, conta com o presidente.

O susto com a reação negativa à divulgação do golden shower fez o Planalto optar por uma live em que o presidente falasse à população sobre o essencial para o governo e o Brasil: a reforma da previdência. Entre mais 9 (!) temas, ela teve 1min40 para si, perdendo de uma seção lamentável de desinformação de 1min40 sobre uma cartilha do adolescente e da inusitada questão de lombadas eletrônicas que mereceu 2min43 da fala do presidente dispersivo, incapaz de definir prioridades e só delas se ocupar. Assim, num jogral mal-ensaiado, reunindo o excedente (já que o presidente estava lá) porta-voz da Presidência e o pouco à vontade general Augusto Heleno, a live não foi muito melhor do que o uso do Twitter. É que o problema remete a uma paráfrase do diálogo entre Alice e o Gato de Cheshire: para quem não sabe o que nem como dizer, tanto faz o meio utilizado.

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