No lugar do trenó, o camburão da Federal. Por Joaquim Ferreira dos Santos – Heron Cid
Bastidores

No lugar do trenó, o camburão da Federal. Por Joaquim Ferreira dos Santos

3 de dezembro de 2018 às 11h30
FOTO: TÂNIA REGO/AGÊNCIA BRASIL.

É dezembro e eu bem que gostaria de ser o primeiro a desejar tudo de bom e que tudo se realize no ano que vai nascer — mas, melhor não. Neste momento, poderia soar como uma espécie de relacionamento abusivo com o leitor, um cinismo fora de hora no gesto outrora tão-dezembro de bimbalhar os sinos da esperança, sonhar com muito dinheiro no bolso, saúde para dar e vender. Eram os clichês da temporada. Palavras que funcionavam como perus da boa vontade, proseccos da boa educação.

O vocabulário de dezembro verbalizava a necessidade tão humana de acreditar num futuro melhor, de paz na terra entre os homens de boa vontade e de achar que, agora sim, a torcida do River Plate vai deixar o time do Boca Juniors chegar em paz ao vestiário. Deu ruim. Estão prendendo rei gordo no palácio. No meu conto de Natal, temo que ao delatar seus cúmplices ele acabe com o resto das fantasias e force Papai Noel a trocar o trenó pelo camburão da Polícia Federal. Bom velhinho coisa nenhuma. Eram 10% em cima de cada brinquedo.

Eu sei que é o dezembro velho de guerra, um mês que deveria ser levado na conversa mole da troca de frases-espanto, “o ano passou num piscar de olhos!” ou “você reparou como morreu gente conhecida este ano?!” Nada aconteceria de relevante, apenas a abertura do livro de ouro da padaria — mas, leia agora, em primeira mão, o que estará no jornal de amanhã. Foi descoberta uma organização criminosa que usava aquele expediente, tão cariocamente jingle-bells, como descarrego de Caixa 2. Neste momento a Operação “Me dá nozes que te devolvo castanhas” já está nas ruas com seus mandados natalinos de busca e apreensão.

Dezembro sempre foi o mês do cessar fogo, do tapete vermelho no comércio e das mentiras desinteressadamente nobres — “eu não quero presente, o importante é a família com saúde”. A única notícia relevante vinha no início do mês, quando a voz do locutor dizia ter chegado o momento de desarmar os espíritos e, ao ritmo do jingle festivo, anunciava o “Já é Natal na Leader magazine”. As rabanadas de 2018 não correspondem aos fatos. Os espíritos estão armados. Inventou-se um aplicativo em que, por um preço extra, você evita os malas e tira no “sorteio” um amigo oculto que realmente lhe faz gosto.

É dezembro e, por mais que esteja combinado ser um mês fantasia, com as luzes piscando bondade fofa no coração dos maiores salafrários da república, seus rituais de paz ficaram perigosos. Experimente ouvir sem constrangimento a Simone cantar que “então é Natal/ pra rico e pro pobre/ num só coração”. Tente colocar o disco naquela altura ostentatória de que sua felicidade natalina é a maior do quarteirão. Em poucos minutos a vizinha da janela em frente postará no Facebook um vídeo furioso em que denunciará esta festa como exemplo de falta de sensibilidade social. Ela informará aos órgãos competentes o número de sua filiação ao cristianismo-marxista — e isto tudo sem deixar de bradar que chegou a hora verde e amarela de um Natal sem partido.

É o novo testamento de dezembro. Para evitar associações óbvias, desligue-se a estrela no alto da árvore. Como é um Natal sem ideologia de gênero, dispensam-se as renas trêfegas do trenó. A quem incorrer no pecado, nada será indultado.

O Globo

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